sábado, 18 de fevereiro de 2017

Sem endereço

326 dias.

Hoje eu acordei com saudade e doeu mais do que deveria.
Dói todo dia. Até parece que vai melhorar, mas nada melhora neste mundo.
Acordei com o peito apertado, triste, sem você pra dividir a cama e, mesmo assim eu não fui capaz de lembrar como o seu rosto era. É a primeira vez que isso acontece.
Eu ainda não consegui, estranho mas não foi possível. Eu só fico aqui enquanto dói, me lembrando perfeitamente de todos os momentos bons, e de como eu sempre soube como ia sentir a sua falta. O problema da falta é que ela é bem assim mesmo: uma hora deixa de ter endereço mas ela nunca vai.
Sinto sua falta sem me lembrar do seu rosto mas eu me recordo sobre os seus olhos e como eles pareciam ter dito a verdade quando você dizia o que sentia. Lembro-me de olhar pra eles, no nosso aniversário de 5 meses, e ver algo real, forte, que chegou até a me assustar. Foi só nesse dia que eu sabia que poderia me entregar porque ficaria tudo bem. Mas nada nunca fica bem, é a lei da vida. Eu me lembro de todas as vezes que eu tive pesadelos e ele me acordava com abraços. Me lembro também de que a grande maioria desses pesadelos eram mentiras, e eu só parecia tê-los pra senti-lo me abraçando e caindo no sono comigo de novo. Ele sempre teve problemas para dormir.
O problema da falta deixar de ter endereço é que ela não sabe ir embora, e a gente se torna esse pedaço de lixo, mais dependente do que os drogados que vivem espalhados pelas ruas.
A falta que eu sinto se transforma em carência e tristeza. Tudo passa a incomodar.
Você sente ciúmes de coisas que não deveria e se torna quase impossível ser sozinha. Tudo que consigo imaginar é de como estaríamos se tivéssemos sido mais forte e lutado por nós.
Um grande "e se" ecoando, em looping.
Se têm de ficar algo pra trás porque não fica a parte que deu errado? Todos as mentiras que você disse, todos os dias que eu chorei até dormir por sua causa. Queria me lembrar de todas as vezes que você me diminui e tudo que contribuiu para que eu me tornasse o lixo que estou atualmente. Já que era pra me lembrar de algo, que fosse todas as ofensas que me despedaçaram.
Alguma coisa na vida tinha de ser mais fácil.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Banho de chuva

No interior úmido de um bosque, um macaco e uma raposa mantinham uma amizade incrível. Ninguém nunca acreditou muito nos dois, ou se quer chegou a entender como aquele relacionamento acontecia. Eles simplesmente eram, e foram desde o primeiro minuto em que eles se viram.
Juntos eles viveram bons tempos sozinhos, excelentes períodos de felicidade com seus bandos e já haviam sobrevivo até a uma grande traição, que mesmo que ainda doa não havia conseguido separar os dois.
Ambos já choraram muito. Tanto que já souberam que iriam secar por dentro, inteirinhos, e virar pó. Mas não. A Raposa esteve ali pelo Macaco, contando com a presença dele como um verdadeiro irmão.
Irmãos que nasceram de um banho de chuva.
Muitas estações se passaram e no meio do caminho, a Raposa ficou triste. Muito, muito triste.
E em um belo dia o Macaco não esteve ali.
Desta vez, pela primeira vez em muito tempo, o Macaco estava cumprindo seu papel na floresta, e por um minuto, esqueceu-se o quanto era importante que ele continuasse ali. Costumava ser o elo entre eles, esse fato de ambos terem vidas que apenas davam errado. Eles sabiam disso, e riam todos os dias, juntos, mas agora não fazia mais sentido.
Um belo dia ele até que quis ficar, mas não deu. Ele tentou continuar, mas não estava lá.
Seu corpo continuava ali, um Macaquinho bravo, gritando com a Raposa sobre as coisas bonitas da vida e como ela não poderia mais ficar triste assim. E a Raposa só ficava mais e mais triste, sozinha, suplicando que o Macaco a entendesse, porque se ele não o fizera, quem poderia?
Vez ou outra, na primavera, eles se enganavam trocando cartas. Insistindo que ainda eram amigos e nada havia mudado. Mas tudo mudou. O mundo gira em tangente, nem tudo é recíproco como deveria.
O Macaco cresceu na vida, se tornou chefe do bando e migrou para o litoral.
A Raposa começou a cavar uma toca, e disse que cavaria até não ter mais forças.
No outono seguinte aconteceu um grande incêndio, milhares de hectares transformados em cinzas.
Assim como aquela amizade.
Assim como todo o restante.
E a Raposa, que finalmente parou de cavar.