domingo, 22 de junho de 2014

Duas noites

O Sol dorme tranqüilo enquanto inquieto um coração se revira em um peito. Em duas noites pensa esse coração: uma que logo foi, e uma que não se demora. A noite anterior foi a noite do amor passado, a noite da reconquista, com ocaso de velhas expectativas e do alvorecer com promessa de epílogo. A noite por vir tem cheiro de prefácio, livro novo, que se manuseia, cheira as páginas, folheia e passa o olho pelo índice. O coração sabe que na noite por vir nada será o que se espera. Será o inesperado superestimado? O coração deveria passar mais tempo revendo o que já viu, a noite que passou, e se decidir logo. Ponderar é perdoar? Quando vemos um sentimento ali perto, e não ousamos olhar para ele, que temos medo? Que ele nos olhe de volta? 
Com alegria sacrificaria cem dias de luz para manter viva a chama da noite que passou. Foi uma noite quente, com cheiro de perfume no ar. Não havia muito o que dizer, as palavras são criados infiéis. Certos assuntos não devem ser tratados com a interpelação dos ouvidos, mas diretamente pelas bocas. O assunto foi longo, e foi um só: aquela noite deveria se estender, mas o tempo urge, e o dia cega. Qualquer tratativa noturna queimará rapidamente na manhã vindoura. 
A noite por vir, como um príncipe recém nascido, não faz idéia do dever e missão que a aguarda. Não se pode exigir que uma noite valha por duas, afinal, ela é a metade de um dia que não se adia. Virá quente, como aquela outra, ou será fria? Terá perfume? Se passada não se abstrai conclusões, quiçá por antecipação elas viriam. Quando o dia vier, e empurrar a noite por vir para debaixo de um risco em um calendário, o que nela foi edificado suportará o sol, as chuvas, e quantos mais inimigos a ela se oporem? Difícil saber. 
Qual noite me prenderá? Outrora me disseram: Se tens dois amores, vá com o segundo, que se o primeiro fosse verdadeiro, o segundo não seria cogitado. É verdade? Não se pode comparar Vênus e Netuno. Também não sei comparar meus sentimentos. São líquidos, em vasilhas profundas, onde não me atrevo mergulhar. Mas logo de mim será exigido que me posicione. Se não escolher uma das noites, dormirei só. Alguém consegue ser feliz sozinho? Sei que sim. Mas o mundo é um lugar cruel para perambular sozinho a noite. Em cada canto espreita um espinho da vida. A serpente da solidão desliza sem emitir um som. Há, ela promete, sempre a opção de aguardar a chegada de uma terceira noite, começar de novo, esconder a cabeça na areia. A solitude é admirável justamente por ser tão difícil. Não se deve recorrer a ela apenas por medo de viver junto a alguém. Nem tratar pessoas como noites, ou carne em gôndolas, de todo modo. A vida nunca deixa darmos cabo em nossos planos, não sei nem porque ainda me dou ao trabalho de tecê-los.

Por Luis Sescão