quarta-feira, 5 de junho de 2013

De lá pra cá

São quatro horas da manhã de quarta feira. De costume, Clarice deveria estar dormindo à pelo menos duas horas. Algo está diferente. O cachorro dos vizinhos está chorando a tempo. Um choro pausado, mais parecido como um pedido de socorro. Clarice gostaria de poder fazer algo, era óbvio que o filhote estava incomodado com a impiedosa temperatura que fazia naquela noite. Ela estava em seu quarto caloroso, enrolada nas cobertas que mais pareciam mantos reais de tão pesadas, o braço ainda ardia como se algo cortasse sua carne quando a possibilidade de sair dali chegava. Quantos graus estaria lá fora? Ao céu aberto, sem proteção nenhuma. Jogado ao além, submerso ao seu destino. Eles tinham muito mais em comum do que qualquer um imaginaria. Quem dera que os dois pudessem igualmente gritar por socorro a quem escutasse. Suas coincidências se dividem no mórbido muro de concreto que separa seus mundos. O pobre cachorro depende de pessoas para poder resolver seu problema, Clarice têm problemas por causa das pessoas. Pessoas, seres que dividem a existência. Igualmente patéticos e surreais. Muitas vezes desnecessários, repletos de maldades e desinteresse. Coisas que caminham pelo mundo não fazendo nada além de tentar ser superiores. Seres que se esqueceram como é amar, congelando seus corações e fazendo o máximo para contaminar a todos. Determinados a serem tristes deixando suas vidas à deriva. Cuspindo palavras desagradáveis a quem queira ouvir. Clarice não se sentiria tão mal com o choro do filhote se hoje não fosse hoje. Se seu antigo amor já tivesse decidido qual sinfonia seguir. Se as ordens que ela havia dado ao coração fossem seguidas e ela nunca mais se apaixonasse de novo. O cachorro não precisaria gritar se sua dona, tivesse uma gota de compaixão e percebesse que ela precisava tomar uma decisão para que nada disso voltasse a acontecer tal como Eduardo. O namoro dos dois não durou nem um ano, a vizinha e seu cachorro acabaram de se conhecer. As diferenças gerando as coincidências. Poucas coisas poderiam estar ligadas se não se olhasse nessa perspectiva. O grito fica mais alto e Clarice fica a cada minuto mais atordoada. O quarto já não é um lugar seguro. Ela resolve correr, abre a porta e vai. E o filhote continua a gritar por calor, pedindo em cada súplica um único resquício de atenção. Os fatos seriam diferentes se fossem diferentes e como é necessário que eles mudem. Ela não vai mais dormir. Ele não a deixa dormir. E assim dividem suas dores em uma linha imaginária onde o muro de cimento úmido e cinza não existe. A cada minuto mais parecidos do que qualquer pessoa pode chegar a imaginar.